segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Musa dos três castelos



Musa dos três castelos: poesia e prosa
António Henriques

Setúbal, A Voz de Palmela, 1969
139 pgs.
Prefácio de Cabral Adão.
Posfácio do editor António Augusto Simões.

A obra:

A primeira parte da obra integra 56 sonetos, de tema regional, um poema, «Montado Alentejano», e algumas quadras.
A segunda parte é constituída por um conjunto de textos que, na sua maioria, retratam aspectos da vida e paisagem da região de Setúbal, e que terão sido publicados na imprensa local.


O autor:

António Joaquim Henriques (25-04-1896 - ?)
Veio viver para Setúbal em 1910.
Em 1914 trabalhava numa fábrica de conservas.
Foi empregado da Biblioteca Municipal de Setúbal, onde se aposentou aos 60 anos
Era o árcade Flor de Salgueiro, da arcádia setubalense Fonte do Anjo.


Do prefácio de Cabral Adão:

«Em 1919 publicou António Henriques um folheto de versos; quase meio século passado, dá um livro à publicidade, aquele intitulado «Hino à Serra da Arrábida», este «Musa dos Três Castelos».
No prefácio do primeiro, escreveu Arronches Junqueiro estas palavras: «Relendo os seus versos, meu bom amigo, sinto neles a sua alma, simples como o assunto que canta; aberta e franca como o horizonte enorme da sua Arrábida; firme e leal como as pedrarias que esqueletam a serra; sonhadora e mística como as grutas que transpomos com o respeito de quem entra num templo, (esses versos) dão-me a sensação deliciosa de entrever uma alma através das palavras. Nem sempre isto acontece.»
Se me é lícito aproveitar a imagem, porque também a sinto, marcarei este prefácio com o sinal da transparência: através destes versos, distingue-se sem custo a alma do seu autor.
Sensibilidade e vocação poética — eis as coordenadas deste artista que tem pela Língua um culto enorme e que trata as palavras com um respeito e um cuidado dignos de nota, nos conturbados tempos de deslize, em que vivemos.
Há 50 anos começou António Henriques a escrever para os jornais com o pseudónimo João Casaleiro, mas breve suspenderia a colaboração. Muito mais tarde, por mim instigado, voltou à actividade, recomeçando com «O Pegureiro», saído na Gazeta do Sul, e continuando depois n'O Setubalense, onde ainda a mantém com maior ou menor assiduidade.
Tenho, assim, responsabilidades na publicação deste livro e delas me honro, porque, graças ao poeta, mais ao nosso editor, António Simões, vem para a luz o que ameaçava perder-se nas sombras do esquecimento.
Consta, esta colectânea, de meia centena de sonetos, do poema «Montado Alentejano» e de algumas quadras de redondilha maior.
Nos sonetos, com uma feitura muito sua, canta António Henriques, Setúbal, o seu rio, os seus laranjais e amendoais, moinhos, praias, serras e castelos, os seus festejos e heróis, as suas fontes, parques e festejos. Exalta os sentimentos, o patriotismo, o lar, a liberdade e o amor. Todos urdidos com o mais fino zelo, procurando servir as regras por que afinam esses difíceis moldes da poesia clássica, sem deixar de as alar com ligeireza de estilo e toques de musicalidade. Um há que me permito destacar, porque é soberbo de expressão e altura: «Rio Azul». Será uma pedra burilada no edifício poético criado pelos artistas que em Setúbal nasceram ou aprenderam a cantar.
E se atentarmos em que «...Era tão rudemente analfabeto / Que nem um a podia conhecer / Nem da instrução saber a utilidade...» como ele próprio confessa no soneto Mocidade, conseguindo posterior e paulatinamente uma apreciável cultura com uma férrea vontade, ampliada pelo seu entranhado amor à Natureza mãe, e pela permanência durante anos na Biblioteca Municipal, em que esteve empregado, saberemos atribuir ainda mais valia à obra que agora se ergue, na cota dos 82 anos robustos e firmes do inspirado vate.
O arquivo poético da cidade do rio azul fica enriquecido com este livro, cuja leitura refrescará o espírito aos que estimem a arte, mormente como agora, posta ao serviço duma região de belezas sem par: o perímetro dos Três Castelos.
Setúbal, Junho de 1968
Cabral Adão»


Um texto, ao acaso:

«Um passeio aos Capuchos
Corria o mês de Junho do ano de 1914. Eu trabalhava ao tempo numa fábrica de conservas ao Bonfim, na Rua de Almeida Garrett.
Combinámos a um sábado ir passar o domingo para os Capuchos, com almoço e jantar feitos e comidos no aprazível local. Juntámo-nos de manhã no mercado, para a compra do avio, segundo o combinado na véspera. Éramos vinte e duas pessoas, com as duas mulheres que seguiam por cozinheiras. Ia connosco um grupo musical de seis figurantes: guitarra, viola, dois bandolins, ocarina e flauta. Comprou-se para o almoço dez quilos de amêijoas, por três tostões; dois quilos de lombo de porco, seis tostões; uma teca de peixe, para o jantar, por um escudo, que encheu uma canastra; em duas bilhas de barro levámos trinta litros de vinho, quinze tostões; menos do custo de meio litro hoje!... Gastaram-se cinco escudos em todas as compras, incluindo a farta matadela de bicho.
A caravana partiu pelo Rio da Figueira, ao som de alegre marcha em que instrumentos e bocas colaboravam. Tudo cantava, animado de comunicativa alegria. Éramos todos gente moça; e naqueles bons tempos a vida corria farta e fácil em Setúbal. A indústria de conservas estava ao tempo em próspera actividade, trabalhando-se todos os dias e serões. Os campos ostentavam a vistosa pompa de loiras searas e ricos arvoredos. Por vezes todos emudecíamos, a escutar a ridente cantoria da passarada, nas verdejantes ramarias. As cigarras ensaiavam seus cantares de saudações às quentes reverberações da luz. Os melros, gargalhando, fugiam assustados à nossa importuna aproximação. Ouvia-se o palrar de gente pelos caminhos, seguindo como nós a gozar o dia pelos campos, entre verduras.
À ida visitámos o Sr. Arronches Junqueiro, na Quinta da Lage, admirando um rico museu e vasta biblioteca e o mais artístico presépio que até à data tínhamos visto. Bebeu-se uma garrafa de Porto, comeram-se bolos, findando a visita com o toque e canto do Hino Nacional, findo o qual nos despedimos e partimos para os Capuchos.
Era este sítio, então, o mais mimoso, pitoresco e preferido local dos muitos e belos destes arredores de Setúbal. É encantadora a vista, magníficas as sombras, com uma excelente calha de água a sair das minas, límpida e fresca, que é delícia beber-se de bruços, com a boca afundada no fio da corrente, a receber-lhe os frescos salpicos no rosto encalmado. Foi aquele um dia memorável, destes raros que enchem a vida, se gravam com doçura para sempre na memória, e o tempo vai depois patinando de poesia retocados com as tintas inapagáveis da saudade. Houve excursões pelo pinheiral que sombreava as encostas até ao alto da serra, donde a vista da região é uma maravilha. Comeu-se, bebeu-se e brincou-se todo o santo dia. Festas idênticas se faziam ao tempo por todos os arredores da cidade, O campo era então a preferida distracção da população setubalense, donde se regressava já noite fechada, a cantar, moído e contente.
Não voltámos aos Capuchos; limitamo-nos a acariciá-los de longe com os olhos, por onde toda a beleza entra em nós e nos prende, como o anzol ao peixe guloso.»

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